quinta-feira, 27 de novembro de 2014

[Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada] - Maria do Rosário Pedreira


Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira

sábado, 22 de novembro de 2014

Vasco Graça Moura

quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar
(...)

Vasco Graça Moura

Lembranças


Tenho-me lembrado de ti...

Uma lembrança suave, repetitiva
Que insiste em entranhar-se nos meus dias.

Sinto-te ao meu lado, no ar
e chego a falar-te!

Tenho tanta coisa a dizer-te!!
O tempo foi tão curto...

Sabes que a falta que me fazes, não se mede por palavras?
Mede-se nos sonhos que tenho
Mede-se no vazio que sinto
Mede-se no olhar que te procura.

É um vazio inexplicável, que e enche de solidão.

(22/11/2015)

Um poema...




Partiria de bom grado
agora, na barca de Caronte,
já cumpri os meus ideais
neste mundo.

Já fiz revoluções
participei em guerras
presidi julgamentos
Nunca ganhei qualquer causa.

Nunca tive nobreza de espirito
para reconhecer
quantos erros cometi.

Travei tantas batalhas
por esta vida
a maior delas, contra mim
tentando derrubar-me
tentando aprisionar-me
a inutilidades.

Nunca cheguei a entender
verdadeiramente quem sou,
não vim com qualquer indicação
do caminho que deveria seguir.
Entrei cega neste jogo
sem ter bussula com que me orientar.

Trilhei e bati sozinha
estas matas densas,
para a minha retirada.

Vivi como eremita...
antes do tudo
em que me transformei.
Não quis seguir os sinais
por teimosia...
agarrei-me apenas ao tempo.

Não quis abrir os olhos
quando escureceu...
Leva-me Caronte...
por todos os pecados cometidos
está já na hora
da minha travessia.

(20/12/05)